quinta-feira, 8 de setembro de 2016

Como 8.000 armas do Brasil foram enviadas a um dos conflitos mais sangrentos da atualidade

João Paulo Charleaux 


06 Set 2016 (atualizado 06/Set 15h46)
Procuradores denunciam ex-executivos de fábrica do Rio Grande do Sul por negócio com homem apontado pela ONU como traficante internacional de armas. Transação pode ter furado bloqueio internacional imposto ao Iêmen

FOTO: KHALED ABDULLAH/REUTERS - 07.06.2013
 
COMERCIANTE EXIBE PISTOLA EM MERCADO DO IÊMEN 


Dois ex-executivos da brasileira Taurus - maior fabricante de revólveres do mundo - foram denunciados pelo Ministério Público Federal em razão da venda de 8.000 pistolas, que acabaram sendo enviadas ilegalmente ao Iêmen, palco de um conflito armado que já deixou mais de 10 mil mortos desde seu início, em 2015.


A investigação corre em segredo de Justiça na 11ª Vara Federal de Porto Alegre desde maio. Segundo informações atribuídas pela agência Reuters e pelo jornal “Zero Hora” aos procuradores do caso, trata-se de um esquema internacional de tráfico de armas no qual dois ex-executivos da empresa brasileira - Leonardo Sperry e Eduardo Pezzuol - teriam desempenhado papel central na venda, burlando embargo de armas imposto pela ONU (Organização das Nações Unidas).

Qual o caminho das armas


Num comunicado público expedido nesta segunda-feira (5), a Taurus reconheceu ter vendido as armas em questão ao governo do Djibuti, país localizado no Chifre da África, região leste do continente. O Nexoperguntou ao Ministério da Defesa se essa transação havia sido autorizada pelo Exército Brasileiro, como determina a lei.


A resposta foi positiva. Porém, a Taurus se refere a uma venda realizada em 2013, enquanto o Ministério da Defesa se refere a autorizações expedidas “em 2014 e 2015”. O Nexo perguntou a ambos sobre a disparidade nas datas, mas não obteve resposta.


Além dessa disparidade, a questão mais relevante é: como as armas enviadas ao governo do Djibuti, de maneira legal, foram parar do outro lado do Golfo de Áden, no Iêmen, ilegalmente.
O atravessador




FOTO: MOHAMED AL-SAYAGHI/REUTERS - 27.11.2012
MANA'A, APONTADO COMO ATRAVESSADOR DAS ARMAS DA TAURUS PARA O IÊMEN 


A resposta para essa triangulação pode estar no papel desempenhado por um cidadão iemenita chamado Fares Mohammed Mana’a. Desde 2008, Mana’a é classificado pela ONU como membro da “lista negra de traficantes internacionais de armas”.


Na informação atribuída pela “Zero Hora” aos procuradores, houve uma “fraude para simular o destino real do armamento, bem como para ocultar o envolvimento do também denunciado Fares Mana’a”.


O empresário foi governador da província iemenita de Saada no ano em que a Taurus diz ter feito a venda do lote de 8.000 pistolas ao Djibuti. Na época, Mana’a já tinha sido citado pelas Nações Unidas em operações semelhantes de tráfico de armas na Somália e na Eritreia. Qualquer busca pelo nome dele na internet levaria a Taurus às resoluções do Conselho de Segurança da ONU que colocam Mana’a “no topo dos traficantes internacionais de armas”.


A Taurus disse que “ao tomar conhecimento das suspeitas levantadas em torno do cidadão iemenita que intermediou a negociação com o governo do Djibuti [Mana’a] (...) cancelou qualquer tipo de negociação com o Djibuti; determinou a retenção da mercadoria em trânsito, e mediante comunicação oficial, colocou à disposição do governo do Djibuti o valor recebido correspondente à mercadoria retida”.


Ainda não está claro, porém, se a interrupção do negócio afetou o envio de parte das 8.000 pistolas, no negócio fechado em 2013, ou se atingiu apenas o envio das 11.000 pistolas que, segundo informações da Reuters atribuídas à Procuradoria, estava programada para ocorrer em novembro de 2015.


Leonardo Sperry e Eduardo Pezzuol eram respectivamente supervisor de exportação e gerente de exportações da Taurus na época em que o negócio foi feito, mas deixaram a empresa depois do início das investigações.
As possíveis irregularidades envolvidas


Para os procuradores, os acusados violaram embargos internacionais de venda de armas que haviam sido impostos pela ONU ao Iêmen. Além disso os dois ex-executivos da companhia negociaram a venda com Mana’a, contra o qual também pesavam sanções.


O Nexo enviou cinco perguntas ao advogado dos ex-executivos da Taurus, Alexandre Wunderlich, mas não obteve resposta. Por enquanto, as investigações recaem apenas sobre eles, e não sobre a empresa em si.


No entanto, segundo a agência, e-mails aprendidos pelos procuradores mostram que a Taurus não apenas sabia das sanções impostas pela ONU como também vinha buscando meio de contorná-las. A empresa reafirma que “não é parte no processo”.
A responsabilidade do Estado brasileiro


O professor de Direito Internacional do curso de Relações Internacionais da Unila (Universidade Federal de Integração Latino-Americana), Gustavo Vieira disse ao Nexo que, nesses casos, existe uma “cláusula de usuário final”. Ela “determina que a venda deve ser feita para o último elo da cadeia de compra”. O fato de Mana’a ter redistribuído as armas no Iêmen pode atentar contra essa cláusula.


Nesse caso, a questão a ser elucidada é se os dois ex-executivos, se a empresa e se o governo brasileiro tinham como saber do envolvimento de Mana’a e do real destino das armas: o Iêmen.

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