terça-feira, 16 de maio de 2017

"A previdência virou só uma questão fiscal, com lógica perversa"

DW

Em entrevista à DW Brasil, o diretor técnico do Dieese, Clemente Ganz Lúcio, aponta os problemas centrais que vê na reforma e critica o governo, que quer aprovar o texto a todo custo, interditando o debate.


Ganz Lúcio: "São os pobres, com renda mais baixa, os que têm a maior dificuldade de comprovar os anos de contribuição"


Uma das vozes mais resistentes à reforma da previdência no Brasil é a do Departamento Intersindical de Estatísticas e Estudos Socioeconômicos (Dieese), que representa os movimentos sindicais. Para o diretor técnico do Dieese, Clemente Ganz Lúcio, a reforma da previdência que tramita atualmente no Congresso é injusta com os pobres e deveria ser debatida com a sociedade.

DW Brasil: Considerando o texto aprovado na comissão especial, com alterações na idade mínima e contribuição para com trabalhadores rurais, e idade para os que recebem BPC, a reforma fica mais justa?

Clemente Ganz Lúcio: Essas mudanças já são fruto do debate que o Congresso e a Câmara fizeram. Eram dramaticamente duras, afetam a vida dos trabalhadores de forma severa. Elas amenizam o impacto da reforma, mas evidente que não resolvem. Os 25 anos de contribuição excluirão muitos trabalhadores da Previdência e, quando der para acessar [a aposentadoria], ela arrocha [o valor do benefício].

O movimento sindical não desconsidera a necessidade de serem feitos aperfeiçoamentos e mudanças nas regras paramétricas, mas o fundamental é que uma reforma da previdência, em primeiro lugar, tivesse como objetivo a universalização da proteção na velhice. A reforma não se propõe a isso. Em segundo lugar, deveríamos discutir com profundidade e cuidado o financiamento da previdência. Isso não é debatido. Também não é apresentada nenhuma inovação de gestão para que os bilhões que são sonegados da previdência não continuem sendo. Ou seja, não dá para chegarmos daqui a 10 anos vendo mais de R$ 400 bilhões de dívidas que não são cobradas porque as empresas não existem mais, a previdência perdeu a receita e alguém vai ter que pagar. Quem vai pagar são os trabalhadores.

Há mudanças demográficas e na precarização do trabalho, de trabalhos cada vez mais inseguros e instáveis, e tudo isso deve fragilizar o financiamento da previdência.

Aqui a previdência virou uma questão fiscal, e o governo diz que vai gastar menos com previdência. Está reduzindo o gasto com previdência, reduzindo direitos dos trabalhadores. Sob esse ponto de vista, a reforma tem lógica, só que a lógica é perversa e inadequada.

DW: O argumento central do governo é a situação demográfica, aumento da expectativa de vida, e como o Brasil vai estar em 2060. O fato de a vida laboral ser mais extensa não deve realmente ser considerado?

CGL: Nós não conseguimos acertar qual é o crescimento da economia no mês seguinte, mas vamos acertar qual é o crescimento da população em 50 anos? Pegamos o modelo do governo e fizemos uma análise do sistema de projeção demográfica que eles estão usando. Imputamos a esse modelo um critério diferente, mais universalmente usado, que desagrega a evolução demográfica por sexo, região e por estrutura etária. Quando você faz isso, dependendo do ponto de partida, pode ter 8 milhões de pessoas a menos com mais de 60 anos em 2050 do que a quantidade que o governo está estimando. Em 100 países que analisamos, 90 adotam esse mesmo que nós utilizamos para fazer a projeção atuarial.

DW: Isso então já provocaria uma distorção significativa.

CGL: Sim, o que a projeção do governo faz: ela aumenta despesas, porque ela coloca mais pessoas velhas, dependentes da aposentadoria, e retira pessoas jovens da contribuição do mercado de trabalho. Então diminui a receita. O governo está usando um cenário. Este cenário deve ser considerado? Lógico que tem, e é um cenário muito ruim. Mas há métodos que apontam para outros cenários.

DW: Na opinião do Dieese o governo não fez todos os cenários que deveria para embasar melhor a reforma?

CGL: Não fez os cenários, não debate as consequências sócio-econômicas destes cenários, não apresenta os efeitos sócio-econômicos das mudanças paramétricas. Exemplo: o governo não diz em quanto essa mudança que ele está fazendo afetará a renda disponível de centenas de municípios da região Norte e Nordeste, que são as mais pobres do países. Municípios dessas regiões têm na renda da previdência social a sua maior renda.

DW: O governo argumenta que a reforma não prejudicará os mais pobres porque na verdade eles já se aposentam por idade.

CGL: Por idade e recebem salário mínimo. Mas essa população vai ser afetada porque parte dela ganha mais que o mínimo. Por exemplo: ganha R$ 1,5 mil reais, não tem uma renda maravilhosa, são pobres. Para esse trabalhador poder acessar a previdência ele vai precisar ter os 25 anos de contribuição. Não basta ter a idade. E são os pobres, com renda mais baixa, os que têm a maior dificuldade de comprovar os anos de contribuição. Milhares de trabalhadores hoje têm vida laboral regular, mas não conseguem comprovar 15 anos de contribuição. Quanto mais 25. E quem são os que não conseguem? Os pobres.

O governo já está dizendo que será necessária outra reforma em 2019. E mais: ameaçam mexer na regra do salário mínimo, para não aumentar a despesa com a previdência.

DW: Há um outro embate enorme sobre o déficit da previdência, o que de fato entra no orçamento da seguridade social no Brasil, sonegações de empresas, como as isenções de contribuições afetaram os cofres da previdência. A previdência, na avaliação do Dieese, não é deficitária?

CGL: A previdência tem que manter atualizado um padrão que cumpra as suas necessidades de financiamento. É evidente que isso pode exigir mudanças paramétricas porque a sociedade pode chegar à conclusão de que não pode bancar tudo e terá que fazer escolhas. O que não julgo adequado é que, se tiver que fazer escolhas paramétricas, isso recaia sobre os trabalhadores mais pobres. Isso não é justo. A sociedade tem que saber que haverá novas regras, e os que têm melhores condições terão que dar uma contribuição maior. Não tem jeito. Agora, antes disso, tem a discussão sobre qual é o padrão de financiamento. No governo Dilma foram desonerados bilhões das empresas para que elas fizessem investimentos e gerassem empregos. Não fizeram isso. Nossa proposta é que temos que voltar a cobrar. Elas têm que voltar a pagar. Em parte o governo está recuperando esta cobrança, em parte não.

DW: O governo quer equiparar as regras de servidores públicos às da iniciativa privada. Porém, mais uma vez, os militares não são incluídos neste debate. Deveriam ser?

CGL: É evidente que nós sabemos que por trás deste debate, que é interditado, está a força dos militares, da carreira de estado, dos servidores da Receita Federal, da Polícia Federal, que dizem: ó, vocês não vão mexer comigo. Esse é o problema. Mas o debate público não significa, necessariamente, que essas carreiras devem ter o mesmo tipo de critério. Em outros países também há regimes diferentes e há regimes que incorporam todo mundo. Depende do debate. Mas um debate como esse pode demorar uma década para ser feito com a sociedade.

DW: É também um momento político bastante delicado para o Brasil com a Lava Jato, com o Congresso e a cúpula do governo sob suspeita. Isso dificulda mais as discussões?

CGL: De fato é um momento muito delicado porque esta fragilidade institucional confere ainda mais instabilidade política. Essa crise toda que estamos vivendo.

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